Uma obra poderosa sobre honra, coragem e verdade, virtudes deturpadas na sociedade atual
Por Paulo Costa | Revisão: Jurandir Vicari
Apesar do aguardado Disney+ ainda não ter chego por aqui, o live-action de "Mulan", que foi disponibilizado na ultima sexta-feira, 04 de setembro, para compra em territórios em que o serviço já se encontra disponível, está causando muitas discussões nas redes sociais dos brasileiros e, motivos para isso é o que não faltam. Seja você fã da personagem ou não, com certeza em algum momento no meio deste caos se pegou pensando em como gostaria de assisti-lo.
Pois bem, assim como todos, também dei um jeito de ver a obra. Ao termino de quase 2 horas de filme eu estava chorando por três razões: a primeira, mesmo compreendendo a situação atual no mundo em relação a pandemia, não consegui acreditar que a Disney abriu mão de uma preciosidade como esta jogando-a diretamente para o streaming. Segundo, agora mais do que nunca, eu queria assisti-lo na melhor sala de cinema. Terceiro, pois me emocionei de verdade com o que vi.
Esteticamente o filme é grandioso em todos os sentidos, de uma primorosa fotografia, passando por maquiagem e figurinos deslumbrantes, e até sua trilha original composta para este, além da canção inédita Loyal Brave True, interpretada por Christina Aguilera, são detalhes que não passam despercebidos e se mesclam perfeitamente com o material e o resultado final explode aos olhos de quem o assiste. Contudo, o mérito esta nas mãos da cineasta neozelandesa Niki Caro, conhecida por obras como "Encantadora de Baleias" (2002) e "Terra Fria" (2006) que ressaltam o protagonismo feminino. Ela conduz a trama com exima sutileza e um olhar meticulosa para nos entregar belíssimas cenas de ação que te colocam no meio de um campo de batalha e te faz sentir exatamente o que cada personagem esta vivendo naquele momento.
O elenco também dispensa comentários, e traz nomes de peso como Gong Li, Donnie Yen, Tzi Ma, Pei-Pei Chang, Jason Scott Lee e até o grande Jet Li marca presença, e confesso que custei a reconhece-lo. A atriz Ming-Na Wen, que emprestou sua voz a Mulan na animação original também marca uma presença afetiva. Liu Yifei por sua vez me foi uma grata surpresa, mesmo com uma vasta filmografia, mas sendo esta talvez sua primeira e grande protagonista, da primeira a ultima cena é impossível tirar os olhos dela.
Outra coisa que me chama bastante a atenção são as referencias cinematográficas ao cinema asiático que aparecem discretamente como belas homenagens, quem é fã de cinema, especialmente o chinês, conseguirá ver tons de "Herói" (2002), "O Clã das Adagas Voadoras" (2004), "A Maldição da Flor Dourada" (2006) entre outros, e o resultado alcançado me faz dizer com um sorriso de orelha a orelha, que "Mulan" é "O Tigre e o Dragão" (2000) dos Estúdios Disney, e se equiparar com a obra do mestre Ang Lee é um feito que muitos tentaram, mas poucos conseguiram.
E não me faltam motivos para rasgar um pouco mais de seda e dizer de boca cheia que "Mulan" é de longe o melhor live action que a Walt Disney já produziu. É uma obra muita madura para os padrões que o estúdio vinha entregando, mesmo com sutis tons de fantasia ele consegue ser firme na realidade sem perder o equilíbrio entre fatores fundamentais para levar um adulto as lágrimas ou prender a atenção de uma criança, e nem foi necessário ter animais falantes para tal feito.
Em relação a trama, devemos levar em consideração que esta é uma versão fiel ao conto chinês. As modificações em relação ao clássico animado de 1998 fazem todo e qualquer sentido, mesmo a falta destes personagens mais fantasiosos como o dragãozinho tagarela Mushu, o pequeno grilo e até mesmo o cavalo Khan, momento algum me desagradou, pelo contrario, todos são relembrados de diferentes formas em alguma momento da história. Até mesmo os números musicais presentes na animação foram deixados de lado para deixar a obra ainda mais realista, e isso foi uma escolha assertiva que a própria diretora já havia mencionado quando questionada pela falta destas musicas: "ninguém sai cantando no meio de uma guerra". Dito isso, ou você assisti sabendo que não verâ uma transposição literal como feito no desastroso "O Rei Leão" (2019) ou vai passar o tempo todo julgando e comparando ao invés de aproveitar a oportunidade de se entregar a algo novo, mas ao mesmo tempo com a nostalgia daquilo que marcou nossa infância.
O longa ainda apresenta poucas, porém boas e necessárias cenas de humor, leve e despretensioso, é o alivio cômico que te prepara para entrar de cabeça em uma guerra. E aqui, o contexto de guerra vai muito além do que estamos acostumado a ver, e é nisso que o roteiro trabalha com maestria. Temos as batalhas internas de cada personagem, a guerra pessoal de cada um de nós e, entre os temas pertinentes, a aceitação de mulheres lutando na guarda imperial, uma brilhante analogia da relação de como a mulher ainda é vista quando atua em uma área predominada por homens, e é inserida em um ambiente totalmente tóxico e machista, e isso esta muito bem inserido e construído em "Mulan", em especial na cena em que cada soldado começa a atribuir qualidades físicas do que lhe agrada em uma mulher, esquecendo que elas possuem sentimentos e muitos atributos que vão além do físico.
A trama ainda apresente uma dualidade interessante entre Mulan e a inédita vilã, Xian Lang, duas mulheres totalmente diferentes, mas que geram um equilíbrio na trajetória de ambas, como um Yin-Yang. Enquanto uma delas é considerada uma "bruxa" justamente por agir e querer ser diferente de tudo que lhe foi imposto e por tal exclusão se aliar aos inimigos, a outra esconde sua verdadeira identidade e o seu dom para proteger quem ama e é neste paralelo sobre as diferenças comportamentais que enxergamos uma sociedade ainda preconceituosa que precisa se desprender de rótulos e aceitar que cada um pode ser o que quiser e está tudo bem.
Por mais que o longa foque em explorar este dom que Mulan teve que esconder sua vida toda e o destino que lhe foi traçado, temos uma jovem que contrariando a tudo e a todos, foi para a guerra escondida, desonrou sua família, foi dada como mentirosa pelo exercito, e ainda assim se tornou líder, provou ser autossuficiente e ainda capaz de salvar vários homens, e não o posto, o filme ainda trabalha duas grandes características desta destinada personagem: coragem e inteligencia. A coragem de desafiar toda uma tradição e a inteligencia para provar seu valor e ser reconhecida como uma líder em um meio dominado por homens. Ainda assim, mesmo diante de todos os temas e caraterísticas que são contundentes e que surgem na narrativa, nada se faz mais poderoso que os valores familiares, tema que a própria Walt Disney adora trabalhar em suas produções, e que aqui se faz de suma importância, pois ele é o fio condutor de toda a jornada épica e heroica da personagem titulo, todo seu destino se da por conta de proteção e amor ao seu pai e, consequentemente sua mãe e irmã, e essa talvez seja a sua maior virtude e vale até parafrasear o ensinamento da Lilo da animação "Lilo & Stich" (2002), outra personagem feminina marcante da Disney, em que ela diz "Ohana quer dizer família, jamais abadona-la ou esquece-la", e Mulan jamais deixaria isso acontecer.
E "Mulan" é justamente sobre virtudes que infelizmente tiverem seus significados deturpados e corrompidos pela sociedade atual: a honra de ser quem você é, a coragem de lutar cada dia a sua batalha para ser inserido em um mundo cada vez mais cruel e cheio de preconceitos, e principalmente, viver a sua verdade sem mascaras e disfarces.