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Resenha: Coringa, por Eduardo Benesi


Expor a sombra do mundo e deixar a própria se explicar
Por Eduardo Benesi
 
"Coringa" (Joker) me fez um rombo no peito, foi como voltar perfurado de um ballet kamikaze ou o que me pareceu um épico monólogo que vez ou outra era interrompido por interlocuções. Esperei pelo pior dentro da sala-de-estar-cinema, o receio dele aparecer no modo shooting perante a plateia. Eu olhava em volta e via ele, ele era o cinema inteiro, ele era a pulsão do meu temor de infância: a criança apavorada diante de quadros de palhaço. Me vi frágil e deslumbrado. Vi também o melhor ator do planeta alcançar a própria zona abissal. Diante de mim, quadros fotográficos pintando um bailarino Joaquin Phoenix e seu parlamento de intenções.

Uma obra magistral acena para a arena e a clareira de um sujeito auto-fóbico. Chamo de auto-fobia um resíduo psíquico permanente, uma sequela subjetiva que já não depende mais de uma alteração de estado estético ou livramento interno, nem a assimilação normativa e o posterior acolhimento por parte do opressor dariam conta. A auto-fobia seria um estado latente de inadequação mesmo ao aparente adequado. É como receber um elogio muito evidente e não se reconhecer nele. Achar que é sobre um outro que não você, mesmo sabendo que é sobre você.

É assustador quando a arte ousa expor a sombra do mundo deixando a própria se explicar. E a sombra nos conta que talvez não haja nada ali adiante, é apenas a consciência supondo o visível e o invisível e uma larga ausência do depois, talvez uma canção niilista. Ano passado eu morri mas esse ano também (Belchior, 2019). E sem depois não há perda mas há livre-arbítrio. Por isso prefiro levantar que há o risco moral mas não a tal romantização da barbárie ou a fundação do web-exército Columbine. Desenxergo uma unidade apologética, noto na narrativa um embaçamento político onde duas ruas ideológicas podem ter inclusive um mesmo nome. Entendo como uma divisão de responsabilidades, inclusive essa que nos aponta enquanto sociedade cruel.

O isolado tem sempre hipóteses como ser um náufrago na ilha de si, desviar dos cegos que o rejeitam ou fingir pra si que está sendo visto por todos eles. É perigoso se descobrir invisível, se descobrir invisível é não existir diante do outro. Veja o exemplo das redes sociais, esse grande abrigo de ex-invisíveis, muitos deles cruéis, outros muitos não - falo inclusive desse quarteirão aqui, cheio de entes virtuosos e esquerdonzelos que hasteiam seus venenos enquanto se camuflam pelo abadá identitário. Ser invisível é estar sozinho dentro de um duelo de vozes. É quando a gente descobre que de fato não existimos, que o eu é um aparelho fragmentado feito de pelo menos 2 vozes internas. É preciso então olhar para elas duelando para se acessar a própria cartilha moral e então negociar consigo ou desistir. O próximo perigo é binarizar esse repertório dialógico, acreditar que essas supostas 2 vozes não podem ser 3 ou 4 ou infinitas

Faz uns anos, um amigo me disse: "toda maldade nasce da dor". Eu concordei pensativo, meio arrependido de concordar. É que muita gente confunde o mapeamento da raiz com a justificação de um mal. Anos depois sou testemunho desse elogio à loucura, esse que, queira ou não, presta um circo empático que presenteia o neuroatípico entregando a psicofobia aos leões. No núcleo de tudo a solidão da aberração. Arthur Fleck não sente amparo nem em seu suicide watch sazonal. A ênfase na criança-adulta começa a anunciar a tragédia do futuro. Desorganiza-se primeiro o centro de comando e depois isso se amplia na desorganização dos corpos ao redor, o átimo do caos aos poucos é convidado ao passeio. Um futuro que não poupará o útero tampouco a matriz fálica. Imagino um laborioso Joaquin em uma sala de ensaio, masturbando o seu autismo polimorfo, o seu modo de colorir lacunas, a densidade em seus dois olhos litorâneos, ele a letra k do baralho planeta-terra, tão rei quanto Coringa, alguém que sempre puxa a gaveta da própria loucura, alguém que já ensaia o seu discurso para Fevereiro.

Em mim uma história que parece começar num jazz digno dos prólogos de Woddy Allen para depois se transformar em um táxi-joker sem as saudações de Martin Scorsese. Tudo termina neste texto tentando prestar contas com a não-redundância. Então me ajudem a não dizer "ui, melhor do ano estou fechando a lojinha dos anos 10, adeus". Pois daqui comemoro devoto e corrompido. Aos que chamam o hino de raso me lembrei de algo bonito (e profundamente superficial ou superficialmente profundo) não sei onde, não sei qual dia, não sei de quem: "que a arte não conta tudo porque tudo é um oco de nada".



Sinopse: Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, toda semana, precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus conhecidos problemas mentais. Após ser demitido, Fleck reage mal à gozação de três homens em pleno metrô e os mata. Os assassinatos iniciam um movimento popular contra a elite de Gotham City, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen) é seu maior representante.