Por Eduardo Benesi
"Coringa" (Joker) me fez um rombo no peito, foi como voltar perfurado de um ballet kamikaze ou o que me pareceu um épico monólogo que vez ou outra era interrompido por interlocuções. Esperei pelo pior dentro da sala-de-estar-cinema, o receio dele aparecer no modo shooting perante a plateia. Eu olhava em volta e via ele, ele era o cinema inteiro, ele era a pulsão do meu temor de infância: a criança apavorada diante de quadros de palhaço. Me vi frágil e deslumbrado. Vi também o melhor ator do planeta alcançar a própria zona abissal. Diante de mim, quadros fotográficos pintando um bailarino Joaquin Phoenix e seu parlamento de intenções.
Uma obra magistral acena para a arena e a clareira de um sujeito auto-fóbico. Chamo de auto-fobia um resíduo psíquico permanente, uma sequela subjetiva que já não depende mais de uma alteração de estado estético ou livramento interno, nem a assimilação normativa e o posterior acolhimento por parte do opressor dariam conta. A auto-fobia seria um estado latente de inadequação mesmo ao aparente adequado. É como receber um elogio muito evidente e não se reconhecer nele. Achar que é sobre um outro que não você, mesmo sabendo que é sobre você.
O isolado tem sempre hipóteses como ser um náufrago na ilha de si, desviar dos cegos que o rejeitam ou fingir pra si que está sendo visto por todos eles. É perigoso se descobrir invisível, se descobrir invisível é não existir diante do outro. Veja o exemplo das redes sociais, esse grande abrigo de ex-invisíveis, muitos deles cruéis, outros muitos não - falo inclusive desse quarteirão aqui, cheio de entes virtuosos e esquerdonzelos que hasteiam seus venenos enquanto se camuflam pelo abadá identitário. Ser invisível é estar sozinho dentro de um duelo de vozes. É quando a gente descobre que de fato não existimos, que o eu é um aparelho fragmentado feito de pelo menos 2 vozes internas. É preciso então olhar para elas duelando para se acessar a própria cartilha moral e então negociar consigo ou desistir. O próximo perigo é binarizar esse repertório dialógico, acreditar que essas supostas 2 vozes não podem ser 3 ou 4 ou infinitas
Faz uns anos, um amigo me disse: "toda maldade nasce da dor". Eu concordei pensativo, meio arrependido de concordar. É que muita gente confunde o mapeamento da raiz com a justificação de um mal. Anos depois sou testemunho desse elogio à loucura, esse que, queira ou não, presta um circo empático que presenteia o neuroatípico entregando a psicofobia aos leões. No núcleo de tudo a solidão da aberração. Arthur Fleck não sente amparo nem em seu suicide watch sazonal. A ênfase na criança-adulta começa a anunciar a tragédia do futuro. Desorganiza-se primeiro o centro de comando e depois isso se amplia na desorganização dos corpos ao redor, o átimo do caos aos poucos é convidado ao passeio. Um futuro que não poupará o útero tampouco a matriz fálica. Imagino um laborioso Joaquin em uma sala de ensaio, masturbando o seu autismo polimorfo, o seu modo de colorir lacunas, a densidade em seus dois olhos litorâneos, ele a letra k do baralho planeta-terra, tão rei quanto Coringa, alguém que sempre puxa a gaveta da própria loucura, alguém que já ensaia o seu discurso para Fevereiro.
Em mim uma história que parece começar num jazz digno dos prólogos de Woddy Allen para depois se transformar em um táxi-joker sem as saudações de Martin Scorsese. Tudo termina neste texto tentando prestar contas com a não-redundância. Então me ajudem a não dizer "ui, melhor do ano estou fechando a lojinha dos anos 10, adeus". Pois daqui comemoro devoto e corrompido. Aos que chamam o hino de raso me lembrei de algo bonito (e profundamente superficial ou superficialmente profundo) não sei onde, não sei qual dia, não sei de quem: "que a arte não conta tudo porque tudo é um oco de nada".
Sinopse: Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, toda semana, precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus conhecidos problemas mentais. Após ser demitido, Fleck reage mal à gozação de três homens em pleno metrô e os mata. Os assassinatos iniciam um movimento popular contra a elite de Gotham City, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen) é seu maior representante.