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Cinema: "Matrix" completa 20 anos



Repleto de simbologia para discussão da psique humana, "Matrix" segue atemporal
Por Fabi Toledo

1999 foi um ano para o cinema que deveria ser lembrado eternamente. Todos os gêneros, sem exceção, tiveram produções importantíssimas no último ano do milênio passado. Vou citar algumas para refrescar a memória: "A Bruxa de Blair"; "10 coisas que odeio em você", com o saudoso Heath Ledger ("Batman: O Cavaleiro das Trevas"); "Star Wars - Episódio I: A Ameaça Fantasma" (Jar Jar Binks e Mid Chlorians, why George Lucas?!); "Beleza Americana", que tem aquele cara do "House of Cards", que é melhor nem comentar; "Clube da Luta", do qual você não pode falar a respeito; o último filme de Stanley Kubrick, "De Olhos bem fechados", estrelado pelo ainda casal Nicole Kidman ("O Peso do Passado") e Tom Cruise ("Missão Impossível: Efeito Fallout"); "Sexto Sentido" com seu grande plot twist do na época novato M.Night Shayamalan ("Vidro")... Entre muitas outras coisas que eu poderia ficar listando, mas hoje é o dia de falar de um deles em especial.

31 de março de 1999. O mundo enlouquecido com a virada do milênio. As irmãs Wachowski (na época ainda Larry e David), depois de muita luta conseguiram levar aos cinemas a deliciosa salada cultural e filosófica da sua distopia de ficção científica/ação, "Matrix". Começo citando o Bullet Time, o efeito que foi popularizado nas mídias visuais graças ao primeiro filme da saga. Em uma explicação superficial, ele é uma junção do chroma key (aquele fundo verde) com câmeras colocadas em 360° fazendo a filmagem de uma cena de forma sequencial, que após tratadas em computador nos dão a impressão de congelamento. Em "Matrix" vemos o uso desta tecnologia em várias cenas. O filme já começa jogando na gente o efeito (e fazendo todo mundo vibrar) no momento em que Trinity (Carrie-Anne Moss, "Jessica Jones") fica congelada no ar e as câmeras giram em torno da personagem, antes dela desferir seus golpes nos policiais que a perseguiam, que se tornam agentes da matrix posteriormente. Outra cena inesquecível para fãs e entusiastas da saga é a que Neo (Keanu Reeves"John Wick: Um Novo Dia Para Matar") desvia das balas dos agentes no telhado, durante o resgate de Morfeu (Laurence Fishburne, "John Wick: Um Novo Dia Para Matar"). Ao longo do filme, a tecnologia foi usada mais vezes, em momentos de congelamento parcial ou total da cena e servindo totalmente ao contexto de realidade que as Wachowkis queriam contar nesta história. E para quem pensa que "Matrix" só é importante pela popularização do Bullet Time, se engana

Para quem não sabe, as irmãs Wachowski foram roteiristas de HQs no começo da carreira. Roteirizaram histórias de "Hellraiser", "EcktoKid" e "Nightbreed", todas de Clive Barker, escritor inglês de terror. E como apaixonadas por HQs que eram, pensaram em "Matrix" justamente como sendo uma, posteriormente evoluindo a ideia para um roteiro cinematográfico e contando com a ajuda de Geof Darrow e Steve Skroce para desenharem os conceitos das máquinas que citavam no seu roteiro. A Warner Bros. não confiava que elas poderiam dirigir o filme, pela inexperiência da dupla, e nem acreditava em um possível sucesso do longa. Nisso, veio "Ligadas pelo Desejo" e tudo mudou. O thriller, que conta com Joe Pantoliano ("Apenas o Começo") no elenco, foi sucesso de crítica e com isso os jovens diretores conseguiram dirigir seu roteiro. Claro que apesar de ganharem este aval, ainda não tinha o respaldo total do estúdio. Receberam apenas US$ 10 milhões para fazer o filme e gastaram tudo na cena da Trinity, já citada. Convenceram quase todos, porém o produtor do longa, Joel Silver, estava entre os que ainda não entendiam do que se tratava essa história. Com este cenário, a dupla o convidou para ver "Ghost in the Shell", anime de 1995 baseado no mangá de Masamune Shirow, uma das muitas fontes de inspiração para o seu roteiro. Convenceram Silver que sua ideia era boa, faria dinheiro e ganharam seu orçamento de US$ 63 milhões.

A história do filme é carregada de simbolismo, filosofia e religião. Das mais diferentes origens. Um dos principais pontos de influência, o filósofo Jean Baudrillard, autor de "Simulacros e Simulação" (o livro que Neo esconde seus "produtos" e de onde foi retirada a frase "Bem-vindo ao deserto do real"), foi convidado para ser consultor filosófico do longa, porém recusou o convite, além de questionar até os últimos dias de sua vida o real entendimento das diretoras/roteiristas da sua obra.


Referenciada em muitos momento, a Bíblia cristã é uma grande base para filosofia discutida no longa. Morfeu carrega muito de João Batista, que anuncia a vinda do Salvador, este o papel de Neo. A presença da Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, representada pelo trio de heróis e nome de Trinity. Cypher (Pantaliano) o traidor Judas Iscariotes. Apoc (Julian Arahanga, "A Vingança do Demônio"), abreviação de Apocalipse ou talvez de Apócrifos. A cidade refúgio dos humanos, Zion, clara referência a Sião, fortaleza construída pelos judeus na época de Davi. A nave do grupo de Morfeu que se chama Nabucodonosor, nome do rei da Babilônia que derrotou os judeus e destruiu o templo judaico. Dentro da nave, um Easter Egg: a inscrição Mark III Nº. 11, que nos liga Marcos 3:11, versículo que diz "Sempre que os espíritos imundos o viam, prostraram-se diante dele e gritavam: 'Tu és o Filho de Deus' ". E por algumas vezes durante a história, Neo é claramente chamado de salvador.

Além da já citada Biblía, Lana e Lilly Wachowski buscaram sua base de roteiro em vários outros materiais, de diferentes origens. Passando por livros que falam sobre a nossa relação com os computadores como "Out of Control" de Kevin Kelly jornalista do The Wired, grande portal de TI, até a livros sobre a evolução humana, de cunho mais psicológico como "Introducing Evolutionary Psychology" dos Doutores Dylan Evans e Oscar Zarate. O "Mito da Caverna", de Platão (consta no compilado de obras do filósofo, chamado "A República"), pode ser visto claramente representado na questão de entender o que é verdade ou ignorância, em momentos distintos durante o longa: A cena das pílulas azul e vermelha; a conversa do Cypher (ali com seu nome de Sr. Reagan) com agente Smith onde delata seus amigos; a conversa de Neo com o órfã ao visitar a Oráculo, sobre a não existência da colher. Ainda em cima da alegoria, Platão reforça em seu texto que quem atinge o conhecimento o que ele chama de mundo das ideias e considera o mundo real, tem o dever de auxiliar a quem ainda está preso na realidade que lhe foi imposta a conhecer a verdade. Papel este que Neo assume também após conhecer e aceitar a verdade, já desempenhado por Morfeu, Trinity e outros humanos que exploravam a matrix em busca de pessoas que enxergavam que algo não estava certo.

Na literatura não podia deixar de citar 2 obras: o clássico cyberpunk, "Neuromancer", de Willian Gibson; e "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll. Se o segundo é possível enxergar um pouco da sua influência facilmente no coelho tatuado na Djour (Ada Nicodemou, "Home And Away"), tendo diversas outras no decorrer do filme, a obra de Gibson já fica mais clara ao espectador que tenha tido alguma relação com o livro de 1984. O plot principal e pano de fundo de ambos , em relação a interação homem X máquina, talvez sejam semelhantes até demais, porém o que separa uma obra da outra é a esperança na salvação que as Wachowskis fizeram questão de colocar nos momentos de catarse do filme e no livro do Gibson há total falta dela.

Outro ponto de extrema carga simbólica está na escolha dos nomes de uma forma geral nos mostram o quanto os diretores se aprofundaram no universo que construíram para que tudo que estivesse em cena, de uma forma ou outra, carregasse significado ligado ao que representa dentro da trama. Começando por Thomas Anderson o nome de Neo dentro da Matrix. Ander em grego significa homem, portanto o nome de Neo significa Filho do Homem. Cristo se refere a ele desta forma em diversas passagens bíblicas. Thomas pode ser referência a Tomé, o apóstolo que pediu para ver as chagas de Cristo e o sepulcro vazio para acreditar na ressurreição, tal qual o próprio Neo que não acreditava que era o Escolhido até morrer em uma luta com os agentes e "voltar a vida", concluindo seu processo de metanóia, iniciada ao aceitar a pílula vermelha de Morfeu. Tomé também é um dos apóstolos que possui evangelhos apócrifos e que são utilizados no gnosticismo - vertente de filosofia herética baseada em conceitos cristãos, também fortemente referenciada em "Matrix".


O nome escolhido para Morfeu vem do deus dos sonhos na mitologia grega. O deus usava uma flor de papoula para fazer as pessoas adormecerem. A flor, que em sua maioria é encontrada em tons rosáceos para rubros, ou seja, vermelhos, iguais a de uma certa pílula. É da Papoula que são extraídas drogas como o ópio e a morfina. Já comentei em parágrafos anteriores sobre o significado de Trinity, mas se formos pensar também na questão de o nome pertencer a uma mulher, podemos remeter a questão da "Sofia" no gnosticismo, o lado feminino de Deus, visto que a trindade no cristianismo é sempre representada de forma masculinizada.

Cypher também carrega em seu nome um grande simbolismo. Seu nome hacker, significa zero o que pode levar a uma correlação a Neo por ser o "The Choosen One", já que 0 e 1 são os números que formam bits, menor unidade de informação na informática. O 0 também pode ser considerado ausência de dado. Já na matrix, o agente Smith chama Cypher de Mr. Reagan, clara referência ao ex-presidente americano, Ronald Reagan conhecido por ter mudado de lado. Membro do partido Democrata, em 1962 passou a ser membro do partido Republicano e acabou se tornando um novo expoente da direita norte-americana, confrontando seus antigos ideais. Antes de sua carreira política foi um renomado ator, e no filme Smith questiona Cypher sobre sua profissão ao retornar a matrix e o traidor escolhe ser alguém famoso, como um ator. Em resumo, o personagem representa o ser que aceita a simulação. O alienado, afinal, a ignorância é uma benção segundo ele.

Agente Smith (Hugo Weaving, "Máquinas Mortais") é uma outra escolha significativa. Smith é um nome extremamente comum para os norte-americanos. Morfeu ironiza e traz à tona esta questão do "comum" logo após que tem a resposta do nome do agente, respondendo que "São todos iguais para ele". Há também outra ironia nesta escolha visto que o "comum" agente denominado Smith acaba sendo o principal contraponto do protagonista, ao longo da trilogia.

A Oráculo (Gloria Foster) possui esta nomenclatura justamente por ser quem os humanos procuram em buscas de respostas, tal qual os antigos oráculos gregos. Historiadores afirmam que o Oráculo de Delfos foi extremamente importante para Sócrates iniciar a busca pela verdade que escreveu e compartilhou com seus alunos. Os outros integrantes da nave, fora Apoc, que fora citado acima, trazem em seus apelidos conceitos embutidos. Switch (Belinda McClory, "Glitch") usa cores distintas do restante do grupo, Mouse (Matt Doran, "Gods of Medicine") é o mais novo e mais talentoso em programação. Tank (Marcus Chong, "Burn Notice") e Dozer (Ray Anthony Parker, "Muse") possuem nomes de maquinários e são os nascidos em Zion. Até o casal que bate à porta de Neo, Choi (Marc Gray, "Tarantino! The Musical?") e Djour trazem simbolismo com seus nomes. Palavras de origem francesas que em conjunto significam "A escolha do dia". E naquele momento realmente oferecem uma escolha a Neo, que seguindo o coelho branco, conforme foi solicitado a ele, vai até o clube gótico de S&M apresentado no filme (curiosidade, o lugar é real e as pessoas que estavam no filme são frequentadores comuns, não figurantes contratados).


Bom, não vou me estender mais, acho que aqui já perceberam o quanto adoro falar sobre este filme e poderia ampliar esta discussão a muitas coisas que não citei como outras religiões tais quais o budismo, hinduísmo, me aprofundar ainda mais em pensamento socrático e filosófico de maneira geral, em cultura japonesa, citando artes marciais, mangás e animes, entender a paleta de cores e escolhas cenográficas do filme, enfim... Todos os detalhes que tornam "Matrix" tão incrível e atemporal. Tudo tem um porquê neste universo de ideias exposto para nós por Lilly e Lana. Me atrevo a dizer que ano após ano, a história que começou a ser contada em 31 de março de 1999 se aproxima mais do nosso cotidiano, se não de maneira real, de maneira alegórica (tal qual o mito do Platão) e serve de reflexão para uma sociedade que cada vez mais está inserida dentro de uma matriz de ideias e se fechando para outras possíveis realidades. Que a cada dia mais esquece de ampliar os horizontes e conhecer mais a si mesmos, tal qual a frase na sabiamente e de forma totalmente proposital, exposta na casa da Oráculo, em grego, "temet nosce", algo como "Conhece-te a ti mesmo".

Matrix é um grande clássico da sétima arte, um filme que até hoje rende discussões, inclusive e principalmente acadêmicas, em todas as partes do mundo, por todo conteúdo cultural que incrivelmente as Wachoswki conseguiram juntar em um único roteiro. E é isso que faz dele ser o que é nestes 20 anos: uma obra única que certamente para sempre será utilizada para refletir sobre a humanidade, sobre consciência e sobre realidade. Uma obra feita para libertar nossas mentes!